quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Boletim Oficial: a história não se apaga nem prescreve

A propósito do desaparecimento do símbolo da República Portuguesa na versão digital e arquivada do Boletim Oficial de Macau (publicações anteriores a 20 de Dezembro de 1999), publica-se aqui a opinião de uma jurista português há vários anos radicados em Macau. Louva-se o trabalho de digitalização só não se percebe o porquê da tarefa hercúlea que certamente foi retirar o símbolo de cada capa do BO. Macau é "património mundial da humanidade" pela sua cultura, arquitectura e história. Uma história singular a todos os níveis e sem paralelo no mundo - onde Portugal teve um papel fundamental (com erros certamente) durante quase cinco séculos - que resulta da sã convivência (com um ou outro episódio de excepção) entre chineses, portugueses e macaenses (já para não falar de outros que sempre foram uma minoria). Quem ignora tamanha evidência através de tão fútil acto não presta um bom serviço ao território. Já a retirada de alguns símbolos similares de diversos edifícios tinha sido uma atrocidade. Ou será que também pensam deitar abaixo os edifícios feitos pelas gentes de Macau e que estão na lista da Unesco?
"Em 1994, com a supressão da impressão a chumbo (ruidosa, poluente, morosa) na Imprensa Oficial de Macau (IOM), impunha-se que se desse um outro passo: a impressão digital (silenciosa, limpa, rápida, mais barata a médio prazo e conservadora dos acervos em memória). Mantendo-se embora a impressão «off-set», suprimia-se, de um lado, os vestígios de um passado remoto ainda presente mas, por outro, ia-...se desbravando o futuro, dando cautelosamente os primeiros passos. Ademais, era usual a IOM receber imensos pedidos de exemplares de antigos números de Boletins Oficiais, cuja existência em papel se ia esgotando e que a impressão digital garantiria existência ilimitada e sem ocupar espaço físico.  
Adquiriu-se então por seis milhões de patacas a impressora digital Docutech Xerox que passou a imprimir livros, opúsculos e... a coroa de louros da ideia, a impressão digital do Boletim Oficial! (já agora, e para que conste, data do mesmo ano – 1996 - o lançamento do Boletim Oficial no ciberespaço, e gratuito, ainda por cima!). Ora, desde então, a digitalização dos BOs tem sido um facto, e presumo se mantenham em arquivo na memória da impressora digital Docutech Xerox todos os boletins oficiais. Foi essa uma das ideias que presidiu à sua compra, caramba! Mais: deu-se de imediato início à digitalização de todos os boletins oficiais, de frente para trás, processo que, segundo consulta que fiz na página oficial, continuou e chegou até 1976. Nada mau!
Nos últimos dias tem andado na boca de espíritos legitimamente escandalizados a surpresa por ver a supressão dos símbolos da antiga potência administrante de Macau. É claro que é ridículo, para dizer o mínimo, o querer negar ou esconder a História, se não revelasse uma mesquinhez confrangedora. Mas, pergunto, não era previsível, face a outros dados não menos ridículos e não menos anedóticos de tentativas de negação, senão de supressão, da História? As mentes perturbadas pelos radicalismos dos anos 66-76 também chegaram a Macau e continuam por cá e, pior ainda, não se deram conta de que do Norte sopram outros ventos, mais abertos, mais plurais, mais ecuménicos.
Tenho muitos e bons amigos chineses que comungam deste universalismo do homem e das ideias, mas infelizmente o discurso dos parolos e dos atrasados mentais é muito actuante e atrevido e vem intimidando quem não se revê nesta cartilha e põe-se a pensar se não é a oficial. Eu penso que não é. Não pode ser. A China moderna está a dar passos incomensuráveis a caminho do futuro que não pode, nem deve, acoitar gente desta que ainda se revê na cartilha xenófoba dos que só sabem odiar e desprezar o Outro. Como estão longe dos ‘’humanistas’’ chineses do séc. XVI que usaram de tolerância e compreensão da dimensão universalista do ser humano!
Há que saber dar os sinais certos à avalanche de jovens chineses que estudaram e estudam a língua e cultura portuguesas e nelas investiram a sua escolaridade e os seus futuros profissionais. Impõe-se que o Executivo ponha de vez ‘em sentido’ o grupúsculo diminuto de gente que não percebe nada de história nem de convivência secular entre povos que é o que Macau é e quer continuar a ser! Neste, como noutros temas da actualidade, de que, por ora, me abstenho de comentar! Estará, porventura, à espera que venha de novo a Macau o Presidente Chinês em mais um puxão-de-orelhas à elite amorfa e imóvel que não se sabe impor? Abaixo a xenofobia! Abaixo a ignorância atrevida de quem quer mandar mas não tem competência e que, obviamente, tem de ser afastada, para dar lugar ao ar fresco dos novos cidadãos chineses que clamam pelo seu lugar na História Contemporânea. E nós, gente lusa, impõe-se que nos mantenhamos vigilantes contra os bajuladores de serviço que se deixam ‘penetrar’ pelos cavalos de Tróia de mau augúrio."
Artigo da autoria de Eduardo Ribeiro (jurista em Macau) em Outubro de 2011
Nota do autor do blog: porque a história não se apaga nem prescreve!

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