quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Um museu de pedra na cidade

Nas lápides do cemitério de São Miguel está gravada parte da história de Macau. Estórias que uma urbanista quer contar em visitas guiadas ao local. Dos materiais aos elementos usados, há uma relação entre vida e morte.
Na história dos mortos está a história dos vivos. E Macau é um livro aberto de narrativa cronológica. Com mais de uma dezena de cemitérios, num território onde o Ocidente e o Oriente se cruzam, onde parsis, arménios, protestantes, chineses, católicos e muçulmanos deixaram a sua marca e enterraram os seus mortos, os cemitérios são o melhor registo histórico fora das prateleiras poeirentas das bibliotecas e arquivos. Apesar de ser um espaço de lembrança e homenagem dos que já não estão entre nós, os cemitérios são também lugares de vida, onde a história continua a ser escrita pelos visitantes. Deixam-se ali símbolos dos tempos e das culturas: clássicas flores naturais, de plástico (com gotinhas de cola ou sem), ursinhos de peluche, fotografias, terços, bibelôs, estatuetas e mesmo jóias. Pais levam os filhos pela mão num exercício de redefinição de memórias esfumadas. Os jardineiros aparam a relva, turistas tiram fotografias e um ou outro transeunte aproveita o fresco dos bancos para ler, gozando aquele típico silêncio de morte – ou deveríamos antes dizer, aquela paz dos anjos.
No cemitério de São Miguel Arcanjo, o maior cemitério católico de Macau, há mesmo quem aproveite a sombra dos pinheiros (que simbolicamente apontam para o céu) e dos salgueiros (que além de ‘chorarem’, simbolizam a imortalidade na cultura chinesa, pois crescem ainda que plantados ao contrário) para dormir uma sesta em cima de uma laje tumular mais fresca. Vivos e mortos descansam juntos, portanto.
Fundado em 1854, São Miguel alberga na sua maioria túmulos portugueses, macaenses e chineses e a forma como estão ornamentados torna explícita a sua origem. Nomes como Ana Lau Simões ou Joel José Choi Anok são espelhos da mistura que, geração após geração, Macau é. “O cemitério é um registo da cidade, uma gigante biblioteca de Macau e do seu desenvolvimento. Reflecte a sua diversidade cultural”, explica Inês Lei, uma urbanista que, de há três meses para cá, iniciou um estudo sobre São Miguel, como parte integrante do seu trabalho para a organização não-governamental Root Planning.
Lei, que tenta “descobrir mais sobre como no passado as pessoas encaravam a morte”, quer organizar visitas guiadas no cemitério, um conceito que encontrou em Hong Kong e lhe pareceu interessante de experimentar em Macau. A ideia é trazer grupos muito pequenos, que não perturbem de forma alguma o contemplativo ambiente do espaço. Mas o calor intenso que se tem sentido está a adiar o projecto. Até lá, Inês Lei lê, investiga, tira fotografias, faz perguntas. Perguntas que lhe permitam responder às interrogações dos outros. “Muitas vezes estava aqui sentada e as pessoas vinham perguntar-me coisas sobre o cemitério. Percebi que havia curiosidade.”
A relação com o local vem da infância. “Cresci neste bairro, duas ruas abaixo Quando passava à porta com a minha avó pedia-lhe sempre para passarmos depressa porque tinha medo. Mas quando cresci comecei a achar que era um lugar agradável e gosto muito de cá vir”, conta. A urbanista de 28 anos assinala o facto de este ser também “um grande espaço verde na cidade”.
No cemitério onde repousa Camilo Pessanha há sinais de que outros ilustres encontraram aqui a sua última morada. Lei não se debruçou ainda na identidade dos ‘habitantes’ de São Miguel, mas sabe apontar características que identificam túmulos abastados. Desde 1847 que Ana Rita Jorge repousa em Macau (possivelmente a sepultura foi transportada do cemitério de São Lázaro que, em 1872, se fundiu com São Miguel), e o seu túmulo, aponta Lei, é feito de lioz, uma pedra que só se podia encontrar em Portugal, numa altura em que o transporte não era comum e seria de preço muito elevado. “O cemitério é também um museu de pedra”, diz.

Em termos de elementos decorativos há muito para ver e é nas campas ocidentais que mais se encontram. As campas chinesas, explica a estudiosa, têm menos decoração e tendem a ser muito simples. Já as ocidentais “representam mais aquilo que as pessoas pensam sobre a vida após a morte, por isso podemos encontrar anjos, cruzes, âncoras, é a forma de as pessoas se ligarem ao paraíso”. A âncora simboliza estabilidade e muitas vezes se avista aos pés da Esperança, estátua feminina colocada em cima de um pódio e ladeada de outras duas, a Caridade e a Fé.A coluna partida encontra-se com frequência em São Miguel e comunica, segundo Lei, “um sentimento forte”, de que “é uma pena as pessoas morrerem cedo”. Muitas vezes as colunas – que simbolicamente apontam para o céu, como quase todas as construções em cemitérios – vêm ornamentadas com plantas, que representam imortalidade. Duas mãos que se apertam dizem “bem-vindo ao paraíso”. A imagem representada em lápides inclui o pulso, mostrando o punho de uma manga. Se estes aparentarem pertencer a membros do mesmo sexo pretendem transmitir sentimentos de amizade. Se os punhos forem claramente da manga de uma mulher e de um homem, simbolizam amor ou casamento, explica Inês Lei.
Funeral chinês na década de 1960
Não significa que os túmulos chineses, com os seus caracteres dourados e pedras escuras ou vermelhas, estejam ausentes de simbolismo. A sepultura chinesa mais antiga deste cemitério é de 1861 e é a de maior dimensão. ‘Fen mu’ é o termo chinês para esta construção imponente e circular que, aqui, termina com um portão metálico, algo que Lei considera “muito ocidental”. Os dois semicírculos que a compõem simbolizam braços e estão assentes numa estrutura inclinada para que a água da chuva possa correr.
Apesar de não ser baptizada, Inês Lei assume-se como católica “que raramente vai à igreja”. Não foi religiosa a motivação para este estudo mas, confessa, inspirou alguma reflexão espiritual. “Fez-me pensar e levou-me a reavaliar a minha vida.”
Não esquece uma frase que um professor lhe disse, numa das suas entrevistas, e que a fez pensar em como, por vezes, estamos mais acompanhados na morte do que em vida: “Antes de uma pessoa morrer, ela está por sua conta, sozinha. Mas depois de morrer não a podemos manter com a família, não a podemos guardar em casa, só a podemos colocar num cemitério. Depois de morrer ela passa a pertencer ao público. Acho isso muito interessante”.
Artigo da autoria de I.S.G. publicado no jornal Ponto Final de 1-9-2011

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