domingo, 20 de janeiro de 2013

Três enigmas da história

Quem frequenta o armazém da história de Macau não raro se dispõe a reordenar indefinições, algumas com um raro fulgor argumentativo, que o tempo foi delendo e perdendo. Estas pequeninas fragilidades narrativas, verdadeiras chancelarias da história das omissões, ajudam a clarificar o processo cultural das nações. Estes três enigmas, três entre tantos outros, mostram-nos que a história de Macau é, afinal, um organismo vivo. 
Da autoria de Ling
O primeiro enigma tem a ver com D. Bartolomeu Manuel Mendes dos Reis, formado em Cânones e Teologia pela Universidade de Coimbra, escolhido para Bispo de Macau em 1752 e tendo chegado ao Território em 1754, a bordo da nau ‘Nossa Senhora do Bom Despacho’. Por pouco não se terá cruzado, em Coimbra, com o Simão Botelho, que Camilo Castelo Branco aprisionou no “Amor de Perdição”, cujos cento e cinquenta anos evocamos. Os seus efectivos onze anos ao leme da diocese foram intensos não só pela turbulência do pombalismo em Macau, nomeadamente a extinção da Companhia de Jesus e a confiscação dos respectivos bens, mas sobretudo pela gestão diplomática das relações com a China cuja política de tolerância sobre a missionação era errática e flutuante. Toma partido contra a escravatura, postulando a liberdade como um direito geral e universal, uma atitude pioneira que lhe trouxe dissabores. Em 1765 parte para Cantão, aí embarcando num navio francês com destino a Lisboa. Problemas de saúde foram os motivos invocados para tão apressadamente sair de Macau. Permanece na capital portuguesa e em 1769 o Marquês de Pombal obriga o Senado a liquidar parte de uma avultada dívida que tinha para com o Bispo D. Bartolomeu. Em Lisboa frequenta a Corte e é amigo íntimo de Frei Manuel do Cenáculo, presidente da Real Mesa Censória, Bispo de Beja e Arcebispo de Évora. Nos “Diários” de Frei Manuel do Cenáculo, o Bispo de Macau, D. Bartolomeu, aparece com bastante frequência. Não obstante todos esses conhecimentos, amizades e cumplicidades, permanece como Bispo de Macau até 1772. Pressente-se um homem de pensamento, de quem se esperava o relançamento do modelo pombalino de universidade em Macau. De resto, parece uma vocação torturada, um intelectual com fraca vocação de administrador apostólico. Em 1773 não consegue evitar um quase degredo, é nomeado para uma diocese em terras brasileiras, como Bispo de Mariana. Decidiu não embarcar para o Brasil, sequer conheceu o novo posto apostólico, que administrou através de procuradores até 1779. Manteve-se em Lisboa até ao ano do seu falecimento, em 1799.
Da autoria de Lok Cheong
O segundo enigma gira em torno do assassinato do governador Ferreira do Amaral, em 1849, e das graves perturbações que esse incidente trouxe para a governabilidade de Macau e para a política ultramarina do reino. Sucessivos orçamentos de Macau, validados pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, contém uma misteriosa linha que diz textualmente o seguinte: “subsídio a um china por serviços prestados ao antigo governador Ferreira do Amaral na ocasião da sua morte”. Quem era esse homem e o que terá feito para perdurar na memória dos seus coevos? Provavelmente uma homenagem à coragem e à dedicação de uma pessoa da qual a história não regista o nome, talvez por segurança, mas aponta a magra tença de 51$000 que ainda vencia trinta e sete anos depois, em 1886.
O terceiro enigma vem directamente da memória do Professor Agostinho da Silva, a propósito da distinção entre ócio e trabalho: “Conheci um homem, que tinha sido Governador de Macau, que já estava aposentado de vários cargos, tinha andado também na política e depois da Ditadura tinha sido afastado de tudo, esse sujeito levava um dia inteiro, numa quinta onde morava, montando e desmontando motores. Era o gosto dele! Montava e desmontava... Aparecia sempre ao almoço, ao jantar não, porque tomava banho antes, mas ao almoço aparecia sempre com as mãos imundas por ter andado a apertar válvulas por tudo quanto era motor e a desapertar no dia seguinte. Ele gostava daquilo! Há sujeitos que não gostam de fazer coisa nenhuma senão de estar a olhar para uma nuvem. Eu considero esses tipos utilíssimos, porque ninguém sabe o que sairá dali”. Correndo a galeria dos governadores, tudo aponta para que a figura que encaixa nesse perfil seja Rodrigo José Rodrigues, o popular RóRó.
Artigo de António Aresta, docente e investigador, publicado no JTM de 13-11-2012
A estátua de Ferreira do Amaral (ao fundo à esq.) num imagem panorâmica da década de 1950

Dois dias depois o mesmo jornal publicou informações adicionais sobre o segundo enigma com base num e-mail de Aníbal Mesquita Borges e Vasco Silvério Marques que a seguir transcrevo.
"A pertinente questão suscitada pelo professor António Aresta, a propósito do enigma que “gira em torno do assassinato do governador Ferreira do Amaral, em 1849”, leva-nos a trazer à lembrança dos leitores e investigadores da história de Macau que, muito provavelmente, apesar de não ter sido registado “o nome, talvez por segurança”, o homem a quem se faz referência era o impedido de Ferreira do Amaral que, com alguma antecedência relativamente ao sórdido acontecimento, alertara o governador para a – infelizmente consumada – acção que estava a ser planeada em Cantão, pelos próceres da província, quando não pelo próprio vice-rei.
O ajudante-de-campo de Ferreira do Amaral, tenente Pereira Leite, que ficou ferido naquela trágica ocasião, conseguiu escapar aos mendigos disfarçados que levaram para Cantão a cabeça e a única mão do malogrado governador, tendo sido ele quem fez chegar a má notícia à cidade. Ora, muito provavelmente, também, terá sido ele que depois levou ao conhecimento dos responsáveis da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar a palavra de amigo, e corajosa, que aquele homem dedicado transmitira a Ferreira do Amaral, dando-lhe conta do perigo que corria, mormente que, em Cantão, circulava a notícia de que a cabeça do governador estava a prémio. Pereira Leite, que atingiu o generalato e que também teve conhecimento dos “serviços prestados ao antigo governador Ferreira do Amaral na ocasião da sua morte”, pode ter sido o autor da proposta de atribuição de uma tença de 51$000 àquele indivíduo, a título vitalício, pensão que o Governo português, pelos vistos, concedia ainda em 1886. Não sendo o impedido de Ferreira do Amaral o beneficiário daquela generosa decisão, mantém-se o enigma, de facto, como refere o professor António Aresta. 

1 comentário:

  1. o meu falecido pai foi para Macau servir Portugal no exercito em 1951 e chegou a Portugal por volta 1959 ou 1960 foi mais duas vezes para ANGOLA de onde voltou para o RAL5 em Penafiel ate a sua morte

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