sábado, 23 de março de 2013

O fim das negociações da Declaração Conjunta

A 23 Março de 1987 Portugal e a China chegam a acordo sobre a transferência da soberania de Macau a 20 de Dezembro de 1999, no fecho da quarta ronda de negociações.
O livro "Rumos de Macau e das Relações Portugal – China (1974-1999)” integra as intervenções de dois ex-ministros dos Negócios Estrangeiros (José Medeiros Ferreira e Pedro Pires de Miranda), quatro ex-governadores (Garcia Leandro, Pinto Machado, Carlos Melancia e Vasco Rocha Vieira), um embaixador em Pequim, que também liderou a parte portuguesa do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês (Pedro Catarino) e dois investigadores (Luís Filipe Barreto e Moisés Silva Fernandes), no âmbito de um seminário organizado pelo CCCM.
Segue-se um excerto da intervenção do Eng.º Pires de Miranda sobre o enquadramento das negociações que conduziram à assinatura da Declaração Conjunta a 23 Março 1987.
“Fizemos ver aos chineses que o acordo de Hong Kong não se podia aplicar a Macau. Era um problema diferente, porque a nossa presença não tinha resultado de ‘tratados desiguais’, guerras do ópio e de ocupações e coisas desse género. A nossa presença em Macau tinha sido consentida, havia quase 500 anos. Não era uma colónia, ao contrário de Hong Kong. Havia eleições, condicionadas é certo. E todas estas e outras especificidades tinham que ser consideradas. Aceitámos a ‘estrutura’ do acordo de Hong Kong, mas só isso. A Lei Básica da nova região seria feita pelos chineses, mas os nossos pontos de vista tinham que ser nela considerados e incluídos na Declaração Conjunta. Fizemos então um esquema das matérias e questões que nos interessava tratar e dos pontos de vista essenciais e daqueles em que poderíamos ter flexibilidade em ceder. Não nos interessavam preâmbulos de tratado que dissessem que no passado as relações eram más, com imposições coloniais, referências a tratados desiguais, etc. Teríamos apenas de dizer que queríamos resolver um problema que a História nos tinha legado. Queríamos que em Macau existisse um regime democrático, com os ingredientes conhecidos, adaptados às circunstâncias locais, devendo isto constar na lei. Queríamos que houvesse uma separação de poderes, com um ‘judicial independente’, com recurso de última instância em Macau. Queríamos que a maneira de viver se mantivesse, usando o conceito de ‘um país, dois sistemas’ e que os interesses específicos dos habitantes de Macau fossem acautelados. Nesta área de interesse específico incluíamos a liberdade religiosa e de prática de culto, o ensino livre, nomeadamente o católico, e a ligação da Igreja de Macau ao Vaticano. Acordámos os contornos essenciais da futura ‘Lei Básica’, assegurando o que nos pareceu essencial. Ficou estabelecido que a China não faria interferências em Macau, durante o período de transição até à transferência da Administração. Em anexos I e II fizeram-se os esclarecimentos sobre aspectos a constar na ‘Lei Básica’. Houve que fazer um trabalho de detalhe muito grande. Os chineses eram minuciosos e nós também. Havia que pôr certas matérias bem claras, outras menos. No caso da religião, um texto que fosse aceite e que mantivesse a liberdade de culto e a sua prática pública. E, finalmente, havia que encontrar uma solução para a questão da nacionalidade e para a data da transferência, ponto importantíssimo para os chineses, que queriam fazê-la coincidir com a de Hong Kong. Nas conversações com o Sr. Zhou Nan fiz-lhe ver que esta solução não era aceitável face às circunstâncias portuguesas, mas certamente que seríamos razoáveis. Desejávamos um período de transição, o mais longo possível, dentro do razoável. Havia uma corrente de opinião em Portugal que pretendia que a transferência se fizesse em data bem já dentro do século XXI, para que a nossa presença fosse de 500 anos. E esta ideia passou para a imprensa. Os chineses reagiram ferozmente. Mas eu expliquei à parte chinesa que o Governo não controlava os jornais e que a posição oficial portuguesa era diferente. O que se pretendia era obter uma transição que permitisse consolidar em Macau o sistema existente, modernizar e dinamizar o território de molde a assegurar um futuro próspero. Os chineses tinham pressa em acordar uma data, pois queriam no próximo Congresso do partido (que se reúne de três em três anos) tratar do assunto de Macau. Compreendi também que os chineses não aceitariam uma data muito distante da de Hong Kong. Propusemos então que deveríamos dispor de um período de 12/13 anos para a transição, para realizar nos nossos planos para Macau. Sabíamos que para lá de Dezembro de 2000 os chineses não negociariam. Essa data limite servia os nossos propósitos.
 Depois de muitas e difíceis negociações, acordou-se para a data de passagem da Administração o dia 19 de Dezembro de 1999. Foi assim possível, tendo em atenção a pressa política dos chineses e os nossos interesses, chegar a este compromisso, aceitável para as duas partes: para eles, podiam aprovar em Congresso, em Março de 1987, o acordo que passava a Administração para a China, antes do fim do século; para nós, tínhamos obtido boas condições e tempo para as implementar. Antes da rubrica do Acordo fizeram-se as reuniões que se impunham. O Sr. Presidente da República convocou o Conselho de Estado, que deu o seu acordo ao negociado. Entretanto, o Sr. Primeiro-ministro e o Ministro dos Negócios Estrangeiros tiveram reuniões com os partidos políticos, que foram informados do andamento das negociações e das principais linhas que se tinham seguido. 
Alguns dos pontos acordados não constavam da Declaração Conjunta, nem nos Anexos, mas estavam registados nos ‘procés verbais’, o que tem a validade que tem... Tratava-se da construção do Aeroporto, do caso do Banco Nacional Ultramarino, do Fundo de Pensões, etc. Mas, como quase sempre acontece em negociações (políticas ou comerciais), desta complexidade, surge no último momento uma complicação inesperada e insolúvel, que parece pôr tudo em causa. Foi o que sucedeu com o problema da nacionalidade, que só foi resolvido na véspera (durante a noite) da rubrica do Tratado. O problema foi resolvido pela introdução de declarações, anexas ao tratado, de ambas as partes, em que cada uma fez a interpretação possível, que lhe era mais conveniente, esperando que, na prática, tudo corresse com bom senso. É que nós não podíamos dizer que todos os chineses que viviam em Macau eram portugueses, nem os chineses aceitavam que todos os habitantes com passaporte português fossem portugueses. Obteve-se uma solução ambígua, com que ambas as partes se satisfizeram e que, na prática, até agora, não tem tido dificuldades em ser usada. O acordo foi rubricado em Pequim, em Março de 1987, e a cerimónia da assinatura teve lugar em 13 de Abril de 1987, também em Pequim”.

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