quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Revisitando o Boletim Oficial de Macau

O Boletim Oficial, ao longo da sua ininterrupta história secular e sob diversas designações, é um interessante, curioso e útil repositório da história de Macau e da história de Timor. Não só no aspecto institucional e jurídico, mas também no âmbito político, diplomático, informativo, científico ou comercial, já que a “parte não oficial” encerra valiosas informações. Junto ao cabeçalho mantinha-se uma directiva sibilina que convém recordar para a memória dos tempos: “Por ordem superior se faz saber, que quando se suscitem dúvidas sobre a inteligência das matérias publicadas nas duas línguas portuguesa e china, prevalece a versão portuguesa”.
Esquecido, quiçá desprezado, este jornal oficial ainda não foi devidamente compulsado em toda a sua extensão. Foi a primeira publicação regularmente bilingue e o mais consistente repositório da sinologia portuguesa de feição política e administrativa. Há subtilezas processuais e equilíbrios político-administrativos na acção dos diferentes governadores que só se detectam nas suas páginas.
Tem escapado, por exemplo, aos queirosianos e aos historiadores, a presença de Eça de Queiroz no Boletim da Província de Macau e Timor. Assim, na edição de 29 de Março de 1873, podemos encontrar o documento seguinte: “Don José Maria d’Eça de Queiroz, bacharel pela universidade de Coimbra, cônsul de Portugal no archipelago das Antilhas hespanholas por S.M. Fidelíssima que Deus guarde, etc. Certifico: a rogo de Francisco F. Ybañes do commercio d’esta praça, que no dia 10 do mez de janeiro chegou a este porto o vapor hespanhol Amboto, capitão Equidazo, procedente de Macau, 85 dias de navegação e 786 passageiros, colonos chinas para esta ilha, com os quaes foi destinado a fazer quarentena ao porto de Mariel, voltando a este de Havana no dia 10 do corrente com 780 passageiros. O capitão em virtude das disposições do governo de Macau deu notícia de sua chegada e á casa consignatária presentou uma lista dos contratos dos passageiros que fica munida as diligências praticadas por este consulado, resultando de ditas diligencias que os passageiros foram bem tratados e que o capitão cumpriu com eles tudo o que se acha prevenido nas disposições do governo de Macau tendo feito constar que os 6 que faltam para o completo numero dos 786 embarcados em Macau morreram na viagem de tysis e desynteria. E ficando satisfeito do bom trato dado aos ditos passageiros pelo capitão e mais tripulantes do dito navio, dou a presente para assim o fazer constar onde convier assignado por mim e selado com o sello d’este consulado geral da nação portugueza em Havana, aos 13 dias do mez de janeiro de mil oitocentos setenta e três. – (L.S.) – José Maria d’Eça de Queiroz”.
Tudo isto está ligado, como é bom de ver, ao tráfico e emigração de cules através do porto de Macau. Mas, há mais documentos assinados por Eça completamente esquecidos no Boletim da Província de Macau e Timor.
Folheando um pouco ao acaso, nota-se que o jornal oficial é um poço sem fundo. Para além da omnipresença do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, nas suas páginas encontramos as minuciosas estatísticas médico-sanitárias de Macau e Timor, as ocorrências policiais, os incontáveis termos de vassalagem dos régulos de Timor, o movimento dos navios, os discursos do Rei ou o instrutivo “Regulamento sobre o serviço da Metralhadora do systema Christophe et Montigny”, de 1875. Podemos conhecer, igualmente, o repertório diário tocado pela Banda de Música da Guarnição de Macau, as actas das eleições de deputados e das vereações do Leal Senado, apreciar a elegância literária dos relatórios do Dr. José Gomes da Silva, os folhetins de Pedro Gastão Mesnier, o anúncio da venda de livros pios, as listas com o nome dos alunos e as respectivas classificações obtidas, a venda de propriedades ou as sentenças dos tribunais militares e civis.
No dia 6 de Fevereiro de 1875, o Governador Lobo d’Ávila, na sessão solene de distribuição dos prémios aos alunos do ensino primário, que teve lugar no salão nobre do Leal Senado, disse, entre outras coisas que “se é modesta a profissão do magistério nas nossas províncias ultramarinas, nem por isso é ela menos respeitável e merecedora da consideração e do respeito público, a que dá incontestável direito a proveitosa e alta missão que desempenha na sociedade”. Estas palavras, guardadas no Boletim da Província de Macau e Timor, têm um significado simbólico, são as primeiras a valorizar a ética e o trabalho do professorado em Macau.
Nesse mesmo ano também foram publicados os estatutos do Colégio de Santa Rosa de Lima, cujo artigo 53º dizia o seguinte: “as aulas são públicas ; a elas pode assistir qualquer pessoa que tiver obtido da regente esta permissão, a qual sob nenhum pretexto pode ser negada, contanto que essa pessoa se apresente com a decência devida”.
Em Fevereiro de 1880 Macau recebe a visita de S.Exª. o Vice-Rei Liu-Kun-I e em Agosto desse mesmo ano, o reitor da Universidade de Coimbra, Visconde de Villa-Maior, agradece ao governador Joaquim José da Graça o envio do Boletim da Província de Macau e Timor e “mais peças oficiais relativas à muito interessante colecção de produtos e artefactos de proveniência vegetal (…) oferecidos à Universidade, para serem colocados no museu botânico da faculdade de filosofia”.
O regulamento da Procuratura dos Negócios Sínicos está publicado em 1882. O governador Eduardo Galhardo faz publicar a 10 de Agosto de 1898 o Regulamento das Casas de Toleradas de Macau.
A notícia , de 8 de Agosto de 1870, sobre o falecimento do médico Leocádio Justino da Costa é deveras comovedora. Natural de Macau e formado em medicina em Goa, “tornou-se querido e chamado por quasi Macau inteiro para acudir aos seus doentes e nessas ocasiões era tão prompto em acudir risonho e consolador tanto aos ricos como aos pobres como era feliz em acertar com a cura”. E como cidadão “ocupou com zelo e ilustração vários cargos importantes nesta sua terra e em todos se distinguiu sempre com esmero e aptidão”.
No dia 14 de Novembro de 1874, na parte não oficial, participa-se o falecimento de Miguel Pereira Simões, “secretário aposentado da Junta de Fazenda Pública de Macau” que “serviu com dedicação o seu paiz, viveu honradamente e morreu pobre”.
Por esta pequena amostra, toda relativa ao último quartel do século dezanove, se vislumbra a sua riqueza temática de feição histórico-sociológica e a sua importância estratégica para se compreender Macau.
1 de Abril de 1939
Ao “zelo patriótico” do funcionário que ao “apagar” o símbolo nacional do Boletim Oficial cuidava que apagava a História, ficamos a dever duas coisas. A primeira, uma chamada de atenção para o enorme valor documental do Boletim Oficial, quer para a história de Macau, quer para a história de Timor, sem esquecer que através dele podemos espreitar para o sentido ideológico da governação portuguesa. A segunda, tentar perceber por que motivos ainda não foi disponibilizada em formato digital a colecção integral do Boletim Oficial, de enorme serventia para a macaulogia em geral e garantindo a sua acessibilidade em qualquer parte do mundo. Não existem, como é sabido, muitas colecções completas em bibliotecas públicas, em bibliotecas escolares ou em bibliotecas particulares. Daí que este deva ser um objectivo absolutamente prioritário.
O Boletim Oficial atravessou a monarquia constitucional, a república, o estado novo, a democracia, escancarando-se em 1999 as portas para um novo futuro continental, cujos passos estão a ser dados. Merece, pois, uma visita.
Artigo da autoria de António Aresta publicado no JTM de 15-12-2011

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